O balé também é deles!

Turma do projeto Bom de Nota, Bom de Dança 2025 encanta Ribeirão Preto e quebra padrões ao mostrar que sensibilidade e arte não têm gênero

Imagine o seguinte cenário: na Gewo Haus, uma instituição social localizada no bairro Vila Vírginia, em Ribeirão Preto, o som da música instrumental preenche a sala. Doze meninos se alinham diante do espelho, atentos às instruções da professora. Eles ajeitam o uniforme, respiram fundo e, em seguida, começam a dançar.

Mas não é preciso imaginar. Essa cena aconteceu de verdade. Eles são alunos do projeto Bom de Nota, Bom de Dança 2025, realizado pela Associação Pró-Esporte e Cultura (APEC) por meio da Lei de Incentivo à Cultura. A iniciativa oferece aulas gratuitas de balé e danças urbanas, com uniformes, lanches e materiais inclusos, em cinco cidades do interior paulista: Ribeirão Preto, Itapeva, Adamantina, Flórida Paulista e Descalvado.

Em Ribeirão Preto, as atividades acontecem na Gewo Haus e também na EMEF Virgílio Salata, reunindo crianças que encontram na dança um espaço de acolhimento, aprendizado e descoberta. Mas, naquele núcleo, algo especial chamou a atenção da equipe de coordenação: o protagonismo de meninos em uma aula de balé.

“Não foi fácil, lembro da reunião de início, foi um grande desafio. Primeiro porque a modalidade balé já traz uma carga muito estereotipada, onde as pessoas entendem que o balé é frágil, daquela bailarina delicada, mas aquela é uma das versões do balé”, conta Angélica Santana, professora responsável pelas aulas na Gewo Haus.

“Muitas vezes eu saí com vontade de chorar e frustrada porque não conseguia atingi-los. Mas pensei que teria que trabalhar a longo prazo e dividi em três blocos. No primeiro era ‘história/se divertir’. Então vieram todos os alunos, sala cheia, e começamos pela parte histórica, inclusive de que o balé se iniciou por um homem. Fomos contando as histórias, mas para não ficar cansativo, esses primeiros meses fizemos aula de dança, tudo do cotidiano deles, só que de forma instrumental.”

Evandro Silveira, presidente da APEC, lembra que essa condução sensível foi essencial. “Quando fomos fazer a reunião de apresentação da equipe lá na instituição, as coordenadoras sugeriram que as professoras Angélica, Mariana e Ana Laura não falassem que era um projeto de balé, e sim de danças. E assim as primeiras aulas foram sendo brilhantemente conduzidas pela equipe, até que, com o passar do tempo, as crianças entenderam que o balé não é só para meninas.”

Angélica destaca que a música foi uma das chaves para criar vínculo com os alunos. “Os meninos vêm de uma realidade social onde primos e tios trabalham nos trenzinhos aos finais de semana, então quando eu colocava as músicas do trenzinho, mesmo que só instrumental, eles dançavam muito, eles se entregavam! E eu aproveitava para ensinar, falando: ‘você viu que precisa ter esse alongamento para fazer isso?’ ou ‘você viu que precisa ter esse ritmo para fazer isso?’”

A professora também dividiu o processo de aprendizagem em etapas. “A segunda parte eu conversei com eles sobre a modalidade do projeto ser balé, e o combinado foi que de terça faríamos aula de balé e na quinta a aula com vários estilos, como estávamos fazendo. No meio desse processo chegaram os uniformes: as meninas se apaixonaram e os meninos ficaram receosos com o uso da sapatilha. Fizemos testes — com meia, com tênis, só com o pé — não dava. Então vamos usar a sapatilha, que é específica para isso.”

O resultado começou a aparecer quando os meninos passaram a coreografar juntos. “Quando começamos com a coreografia tivemos a ideia de fazer uma só com os meninos, e entramos na terceira parte, que é curtir esse momento. O meio que eles vivem é machista, então é a realidade deles. A questão era: como eu entraria na realidade deles para cumprir o objetivo do projeto? E agora eu não vejo a hora de vê-los no palco!”

Thamires Gomes, gerente de coordenação da APEC, acompanhou de perto essa evolução. “Quando pegamos a realidade desses meninos, que convivem com um machismo enraizado em suas vivências, poder mostrar novos rumos e lentes diferentes para o mundo é fantástico. Não é só uma aula, é o afeto e o carinho que eles não têm em casa muitas vezes, e encontram esse lugar seguro em um projeto.”

O balé, ainda cercado por estereótipos, é uma das expressões artísticas mais completas. Exige força, disciplina e entrega. Desenvolve coordenação motora, equilíbrio e consciência corporal. Mas o que se vê na Gewo Haus vai além da técnica: é o corpo como instrumento de liberdade.

O projeto Bom de Nota, Bom de Dança é resultado da parceria entre arte e educação, levando aulas gratuitas e estrutura completa para centenas de crianças e adolescentes. Em cada cidade, a iniciativa encontra novas histórias, novos talentos e novas formas de provar que a arte é um direito e uma linguagem que pertence a todos.

O projeto conta com o patrocínio da Usina Branco Peres, Grupo Maringá, Ipiranga Agroindustrial e Caldema. A cada semana, nas duas aulas regulares, esses doze meninos seguem dançando. Entre um giro e outro, descobrem que podem ser o que quiserem. O que acontece dentro daquela sala é mais do que um ensaio: é um ato de resistência e de afeto.